Caros leitores.

O cantor Fagner estará em Recife dia 24 próximo: cuidado. Passe longe para não correr o risco de ouvir um dos seus refrões escancarados.

Se você é fã do cantor, então talvez goste deste texto que escrevi sobre a íntima relação entre ele e sua principal letrista, a poetisa portuguesa Florbela Espanca, que viveu no início do século passado. Íntima relação de marido bêbado e mulher impotente e dependente.

Fagner Espanca Florbela



É triste a história de amor atemporal entre Fagner e Florbela Espanca. A pobre poetisa, que em vida já tinha motivos de sobra para ser infeliz, tem alguns de seus poemas popularizados não por um programa eficiente de educação pública, ou por uma inexplicável febre de leitura, mas por um músico medíocre.

Música é uma linguagem com um forte poder de criar sentido. Isso é mais do que óbvio quando ouvimos Beethoven, Norah Jones, Hermeto Pascoal. As pessoas fazem leituras, traduções para suas línguas, interpretações do que podem ler de uma música. Às vezes sem entender do que fala a letra. Às vezes, a música diz tanto, que mesmo apto para compreender as palavras, o ouvinte não as nota, tamanho o fascínio que a melodia, a harmonia, e outros elementos puramente musicais exercem sobre ele. Com isso, tomo que um poema pode ser engrandecido ou rebaixado ao desagradável por uma música que se lhe pendura ao pescoço.

Sabemos que a melancolia é densamente explorada por Florbela, em toda a sua obra. Seus versos, muitas vezes, expressam suas angústias. O cantor popular Fagner desrespeita essa verdade quando compõe sobre quatro dos sonetos de Florbela músicas de amor rasgado e gritante. Não se nota o que dizia a poetisa ao ouvirmos os gritos desesperados do cantor. A melodia, além de repetitiva, é medíocre, pouco original. Os arranjos, exaltados, vão de encontro ao texto, introspectivo. A percussão em Fanatismo ocupa todos os espaços, se joga por sobre a melodia (pobre, como já mencionei) com esparros de lamentações burlescas e deprimentes.

Tais arranjos demonstram, ao meu ver, que Fagner não apreendeu o espírito que Florbela quis deixar nos seus textos. Os poemas falam em um tom baixo, que inspira pena, e não revolta. Ou risos. Os sonetos são tristes, e não exaltados. A melancolia de Florbela foi atropelada pela expansividade teatral de Fagner.

A parte musical tem sempre interpretações pessoais, o que nos obriga a ignorá-la ao analisar a sociedade entre o músico e a poetisa. Até aqui, ficam impressões e opiniões, portanto. Mas, se nada disso pode ser condenado, não podemos fechar os olhos para a mais ousada intervenção de Fagner na poesia de Florbela. A mais cruel agressão. A mudança no texto do soneto Fanatismo.

A intervenção é absolutamente inaceitável. Acrescentar música a um poema não dá o direito de mudar a disponibilidade dos versos, retirar sílabas, e muito menos acrescentar versos. Ainda que a música valesse a pena.

Na primeira estrofe, Fagner acrescenta um artigo A, no terceiro verso. No último terceto, ele suprime a conjunção E, no primeiro verso, e a interjeição Ah!, no segundo. Além de substituir vivo por digo, inexplicavelmente, também no primeiro verso.

Esses são detalhes, por si só, já condenáveis. Agressões que deixariam Florbela de cama. Mas são irrelevantes perto do que chamei d'A Atrocidade Final: Três versos a mais! Um terceto a mais! Um terceto mal feito, pois não são versos clássicos, de 10 sílabas. Eles têm seis sílabas, cada um; as rimas são aproximadas.


Já te falei de tudo

Mas tudo isso é pouco

Diante do que sinto. (Fagner)


O que isso quer dizer? O que ele quis dizer com isso? Que a poesia estava incompleta? Que não era para ter sido um soneto? Que sua música exige tais versos? De fato, esses versos finais são os que melhor se encaixam à melodia. Depois de refletir, depois de deixar passar uma certa tristeza, e uma ponta de revolta, a pergunta que fica é uma só, e é inevitável: quem deu a Fagner a autoridade de modificar os versos eternos de uma das mais sensíveis vozes da poesia portuguesa? Talento, por certo, não foi.

* * *


Eu escrevi essas coisas durante o nosso 3º semestre letivo. Fui obrigado até a cantar a música do famigerado Fagner. E, por incrível que pareça, ela até que ficou boazinha.

Para ouvir minha versão, clique aqui: Fanatismo.mp3

Comentários

Anônimo disse…
Oi, Bernardo.
Aqui é sua ex-colega de faculdade, Laura. Tudo bom?
Recebi o convite de casamento de vocês por e-mail. Antes de tudo, parabéns.Fico muito feliz de ver um casal como vocês dar certo de verdade.
Vim visitar o blog só pra dar uma olhada e me deparei com esse teu texto sobre Fagner e Florbela Espanca. Eu me lembro exatamente o dia que você apresentou esse trabalho na aula de Ermelinda.
Vou logo dizendo que discordei de muita coisa que você disse nesse dia. Foi linda a versão da música que você e Paula apresentaram. Mas cheguei em casa ansiosa pra lembrar a versão de Fagner. Liguei pra minha mãe pra saber se tínhamos o cd em casa, e assim que achei, fui ouvir. Sim, eu sou fã incondicional de Fagner.
Vou logo acrescentando que muitas pessoas duvidam um pouco do meu gosto musical. Sou bastante eclética, mas tenho uma queda enorme por músicas muito populares e bregas e românticas (essas palavras são quase sinônimos em se tratando de música, né?).
Eu sei que boa parte do que você escreveu demonstra uma questão de opinião, por isso quero expor a minha. Não acho Fagner um cantor medíocre. Ele é simplesmente um cearense que quis trazer músicas belíssimas, verdadeiras poesias, mas sem muita metáfora nem grandiosidade, para a boca das pessoas. Pra isso, geralmente, tem que se ter letras e melodia simples, não é verdade? Não vou nem falar da melodia porque não entendo muito de música. Só sei que sempre fui fã de músicas que falam de amor e são tão simples que não é preciso dizer mais nada e ainda dão vontade de gritar. Fagner é assim. Sempre que eu escuto "Deslizes", canto gritando como se aquela história fosse a minha. É muita emoção rasgada em canções, repito, muito bonitas. Qual o problema nisso? Eu não vejo absoutamente nenhum. Você pode ver. Isso tem a ver até com gosto musical, e eu não peço a ninguém pra ter o mesmo que o meu (se bem que eu acho que as pessoas seriam mais felizes se elas fossem mais bregas...)
Mas o ponto onde eu quero chegar é defender a música "Fanatismo". Não concordei com aquelas alterações que ele fez no soneto. E só percebi isso quando li seu texto. Mas na versão que eu tenho dessa música, ele não troca o "digo" pelo "vivo". São detalhes que eu também considerei graves, mas quero falar de outra coisa.
Dado o fato de que Fagner é um cantor popular, que canta músicas "gritantes" de amor, qual o problema dele gravar Florbela numa versão ao seu estilo? Certo, ela é introspectiva, o poema é introspectivo. Mas leia imaginando que não foi ela quem escreveu. Não é mentira pensar em "Fanatismo" como um poema de amor tresloucado, alvoroçado. Eu consigo ver esse tipo de paixão no poema. Então por que Fagner, um apaixonado, não poderia passar a mensagem de Florbela do jeito dele? Eu acho que ele pode. E não acho certo dizer que ele leu Florbela sem entender só pelo fato de ter transformado o sentido do poema. Ele fez o mesmo com Cecília Meirelles em "Canteiros" e também não vi nada que prejudicasse a leitura do poema. São só formas de passar aquilo.
Além disso, você comentou sobre os últimos versos acrescentados. São versos da música "Meu querido, meu velho, meu amigo", de Roberto Carlos. Não sei se você já ouviu. É uma música em homenagem ao pai. http://letras.terra.com.br/roberto-carlos/194987/ Nesse link, você pode ver a letra toda. Não vi o acréscimo desse trecho como uma afronta a "Fanatismo", como se o poema fosse pouco. Mas quem sabe do sentimento das pessoas? Ele pode acrescentar a música incidental que ele quiser pra demonstrar o que ele quiser pras pessoas. E se ele quiser pegar um poema de Florbela ou de Cecília, ele pode transformá-los em mais apaixonados. Não vi problema nessas versões. Só paixão.
Enfim, Bernardo, são só opiniões. Eu só não queria perder a oportunidade de defender um dos meus cantores preferidos. Parabéns pelo texto, pelo blog e pelas bodas.
Tudo de bom pra vocês dois.
:)
Pedro SOUSA disse…
Tem razão, Laura. São só opiniões. Muito obrigado pelas suas. Elas vão ficar aqui, no nosso blogue, por tempo indefinido :)

Saiba que eu gosto muito de você, e fiquei feliz em ver comentários seus aqui.

Esperamos te ver no casamento. Não vai ter brega, mas acho que a música vai valer a pena para todos os gostos. rsrs..

Um abraço, moça. Fique com Deus.

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